segunda-feira, 14 de março de 2011

Capítulo 1

Acho que devo situar o início da minha história naquela noite, no inferninho da Vila Madalena, quando constatei a desumanidade de meu personagem. É claro que, além do fato de ser um personagem meu, outras características concorriam para fazer dele uma figura inverossímil enquanto ser humano, mas, no momento, apenas uma delas nos interessa.
Augusto – era esse seu nome – não passava de um indivíduo banal, como muitos que se vê por aí, sem grandes defeitos ou qualidades. Não era bonito nem feio e, de tão comum, diria que era quase invisível. Tinha uma formidável cara de idiota, onde se encontrava permanentemente parafusado um sorriso bobo de gente que concorda. Na verdade, tinha lá suas opiniões, mas preferia guardá-las para si mesmo, o que fazia dele uma grande sensação nos meios sociais, um interlocutor disputadíssimo. Mestre incontestável do diálogo cretino e da observação redundante, era capaz de manter conversas desinteressantes por horas a fio, tendo sempre pronto no gatilho um “talvez” aqui, um “pode ser” acolá, ou, claro, um “concordo”, para delírio máximo dos fãs.   
Imagino que você, leitor esperto, já deva ter notado que se trata mesmo de um personagem bem rasteiro e logo vai se perguntar por que diabos deveria se ocupar com essa figura tão reles, essa variedade biológica tão vulgar, esse verdadeiro templo da mediocridade a céu aberto. Francamente, não tenho resposta para isso e, numa tentativa desesperada de justificar o fato de tê-lo feito perder tempo até o terceiro parágrafo, só posso citar, a título de compensação, o detalhe que fazia do meu personagem um fenômeno tão incomum: Augusto era o maior comedor da sua época.
Falo sério quando digo que Augusto era o maior comedor da sua época e não me refiro à retórica barata dos galãs de botequim ou a sonetos melosos destinados a molhar calcinhas de secundaristas ingênuas. Nada disso. Quando digo que Augusto era o maior comedor da sua época, estou falando de frieza e crueldade. Estou falando de ausência absoluta de escrúpulos. O que ele fazia com as mulheres nada tinha a ver com as peripécias de figuras românticas lendárias como Don Juan ou Casanova.
Não se iluda. Quando digo que Augusto era o maior comedor de sua época, não estou falando de um príncipe encantado. Estou falando de um pervertido. Digo isso sem moralismos e creio que vocês vão me entender.
Sem grandes atrativos físicos, não aparentava sequer vagamente a virilidade que de fato possuía. Era uma espécie de sátiro, freqüentemente acometido por um priapismo vigoroso do qual só conseguia se ver livre depois de horas e horas ininterruptas de sexo. Profilaxia que, aliás, fazia questão de obedecer à risca. Basicamente, sua vida se resumia a suprir essas necessidades físicas com o máximo possível de mulheres e pronto. Nada mais.
Quando me lembro da maneira como se desfazia das garotas que conquistava, uma a uma, sem o menor remorso, penso que, talvez, ele tivesse se deslumbrado muito mais com o jogo do que com o prêmio em si. Alguns de seus detratores viam nesta atitude uma sombra de misoginia e os mais virulentos, sobretudo os maridos enganados e as mulheres rejeitadas, não hesitavam em ressaltar a sua homossexualidade. O que não era exatamente falso. Ainda que não existissem indícios de que Augusto gostasse de homens, também não poderia dizer que gostasse de mulheres. Exceção feita à buceta, os demais traços que definiam uma mulher como tal – principalmente os sentimentos – não eram, definitivamente, objeto de seu interesse. 
Mas confesso que, mesmo sendo Augusto um indivíduo ordinário em todos os aspectos, sempre o invejei profundamente. Afinal, como não invejar um cara desses? Como não invejar um general cujas tropas são capazes de conduzi-lo à maior das vitórias, que é o coração de uma mulher bonita? E, justiça seja feita, Augusto esteve na cama das mais atraentes mulheres de seu tempo. Mulheres estonteantes, mulheres que eu já desejava muito antes dele aparecer, as melhores que habitavam a minha cabeça... Eu as inventei, é verdade. Mas quem comeu foi ele.
E a melhor de todas, a mais perfeita, a mais cobiçada, a mulher mais bonita da cidade, já estava no papo quando entrou no inferninho naquela noite. Era uma morena escultural, com não mais que vinte e cinco anos, cabelos negros e lisos que lhe desciam até a bunda – farta, e bem desenhada - e um rosto altivo de traços meio árabes, que lhe emprestavam um certo ar misterioso de moura encantada. E mais: não era apenas bonita, mas também inteligente, rica e tinha classe suficiente para usar piercings e tatuagens – modismos já tão vulgares à época – sem parecer uma reles putinha de calçada, como acontecia a todas as outras. Mas o fato é que, a despeito de sua classe e inteligência, caíra presa de uma jogada de autopromoção barata.
Àquela altura, a cidade já estava povoada de lendas a respeito de Augusto. As mulheres falavam de um homem estranho e misterioso que, mesmo não sendo bonito, era um amante vulcânico, capaz de proporcioná-las satisfação sexual ilimitada. Mas falavam principalmente de seus olhos, distantes e enigmáticos, como portas de um abismo profundo e insondável. Ansiavam ingenuamente devassar sua intimidade, descobrir os segredos de sua alma atormentada que vagava sabe-se lá por quais mundos remotos.
Naquela época elas ainda não sabiam, mas Augusto não era enigmático e nem profundo. Era simplesmente vazio. Exceto por sua performance sexual - que era, de fato, invejável – tudo o que se falava a seu respeito não passava de um amontoado de representações hiperbólicas produzidas e reproduzidas por cada uma de suas amantes, número que, aliás, crescia exponencialmente. Quanto mais amantes, mais lendas e quanto mais lendas, mais amantes.
Devo admitir que até hoje não entendo como ele podia exercer tamanho fascínio sobre as mulheres com aquela cara inexpressiva de retardado. Talvez elas vissem em Augusto somente aquilo que queriam ver, como se ele fosse uma espécie de catalisador de suas expectativas, ou coisa que o valha. Ou talvez essa idéia de abismo que girava em torno de seu olhar obtuso provocasse nas mulheres uma espécie de excitação mórbida, típica das paixões sombrias, uma vaga sensação de morte que certamente as retirava do torpor de suas vidas comuns. Ou, o que é mais provável, talvez elas fossem simplesmente idiotas. Decerto eram todas enganadas. E não culpo Augusto por isso, não o culpo por roubar-lhes a verdade. Afinal, não existe nada que se retire da vida de uma pessoa medíocre que não faça dela algo muito melhor.
A moura encantada, no entanto, não era medíocre e a verdade que lhe fora roubada movimentaria a força incontrolável do caos em seu mundo e também no de Augusto. Uma espiral de destruição mútua que só cessaria com a desintegração absoluta de toda e qualquer esperança em suas vidas. Mas estou me adiantando aos fatos. No momento, o que nos interessa é a moura encantada, no auge de sua beleza quase sobrenatural, vagando louca pelo inferninho, à caça de Augusto, o homem misterioso que daria finalmente sentido à sua vida fútil de cocote letrada. 
Esfregava na cara de todos no inferninho seu corpo, de uma voluptuosidade quase criminosa, enquanto esperava que sobre ele pousasse o olhar certamente faminto de Augusto. Só o vira até então duas vezes de relance, mas estava certa de que tudo se daria de acordo com seu plano, era apenas questão de tempo. Enquanto isso, distribuía sorrisos burocráticos pelo bar ao mesmo tempo que vigiava com o canto dos olhos a aproximação de qualquer indivíduo que se parecesse, ainda que vagamente, com seu alvo. Permaneceu nessa ânsia por quase uma hora, até que, finalmente, por entre os corpos na multidão que lotava o inferninho, em um canto escuro e enfumaçado, avistou a figura esquálida de Augusto.
Estava rodeado por umas quatro garotas, todas disputando-lhe a atenção, abanando seus rabinhos, como vira-latas esperando que alguém lhes atirasse um pauzinho. Ele, no entanto, parecia mais preocupado consigo mesmo e com sua cerveja. Olhava ao redor com desinteresse e, às vezes, mexia no celular. Mesmo assim, tinha-se a nítida impressão de que bastava um estalar de seus dedos para que elas tirassem a roupa e se entregassem ali mesmo. Eram bonitas, sem dúvida, mas a moura não temia nenhuma delas. Tinha absoluta consciência de sua superioridade e sorria com desdém diante da humilhante submissão a que se permitiam as cadelinhas. Com ela, obviamente, seria bem diferente. Jamais precisara rebaixar-se a tal ponto para conseguir os homens que desejava. Bastava deixar que a vissem.
Assim, posicionou-se estrategicamente, de modo a entrar no campo de visão de Augusto, quando, entre eles, interpôs-se um grupo de amigas que vinham lhe trazer um novo pretendente, o quinto naquela noite. Tratava-se de um fidalguinho empavonado, desses que as meninas lésbicas costumam usar de fachada em festas de família, desses que são uma beleza para apresentar às tias. Mas não era de se jogar fora. Em momentos de tédio, pensou a moura, sua bundinha malhada poderia tê-la distraído. Naquele momento, entretanto, não sentia tédio e estava mesmo farta da ausência de pêlos dos machos metrossexuais anabolizados que normalmente a assediavam. Além disso, recusava-se a aceitar pretendentes que gastassem mais do que ela em cremes e xampus. Queria um vira-lata sujo, não um poodle perfumado. Assim, não pôde disfarçar sua decepção quando, depois de se livrar do bibelô, olhou para o canto onde estava Augusto momentos antes e não encontrou nada além de gostosinhas abandonadas e fumaça de cigarro. Seu alvo era mais escorregadio do que ela imaginava. Estava excitada.
Para ela, que sempre teve os homens que quis, a caçada era algo absolutamente novo e todas as dificuldades só faziam aumentar o seu furor. Andava inquieta olhando em todas as direções e bastava perceber Augusto, mesmo que distante, para sentir-se tomada por uma exaltação quase febril.  Tinha a face enrubescida e sentia palpitações, como se um boxeador esmurrasse seu tórax, só que de dentro para fora. Jamais sentira nada parecido, fenômeno que minha avó, em sua sabedoria ancestral, não hesitaria em definir como o bom e velho “fogo no rabo”.
No entanto, a noite corria e a aproximação parecia difícil. Não havia estado ainda a menos de três metros de seu escolhido e começava a pensar que talvez ele a estivesse evitando, hipótese que logo afastou pelo absurdo - não havia, na face da Terra, homem capaz evitá-la. Encontrava-se perdida nestas meditações, quando viu Augusto parado numa fila de banheiro, a uns dez passos, manuseando o celular com displicência, sem notar o par de olhos cravados sobre ele - olhos com brilho de lâmina afiada. A moura estava firme em seu propósito. Nem quando a fila andou e Augusto entrou no banheiro sem dar por ela, sua determinação esmoreceu. Manteve-se plantada próxima à porta. Quando ele saiu novamente, os olhares se cruzaram pela primeira vez. Ela sentiu o coração quase lhe saltar pela boca. Com um ímpeto que desconhecia em si mesma, driblou toda uma zaga de novos pretendentes e amigas alcoviteiras e precipitou-se na direção de seu alvo. Estavam, enfim, frente a frente. Para serem felizes eternamente, só faltava ele dar a cantada.
- Carne por carne, a sua não me agrada.
Foi o que disse o maldito blasfemador. Uma coisa desumana, se querem minha opinião. Ela não estava acostumada a ser tratada daquela forma e não é difícil imaginar a decepção se abatendo sobre sua cabecinha autoconfiante naquele momento. A inabilidade em lidar com aquele tipo de situação era tamanha que ela não conseguiu sequer esboçar reação. Quis xingar, fazer um escândalo, chamá-lo de viado, mas estava atordoada demais para isso. Ficou ali parada, esperando que Augusto dissesse mais alguma coisa, qualquer coisa que desse sentido àquela frase improvável que saíra de sua boca. Mas ele não disse mais nada. Apenas foi embora, deixando-a sozinha com sua frustração mal digerida. Ela mal conseguia acreditar, mas era mesmo verdade: estava sendo rejeitada.
E mesmo naquela situação patética, humilhada, ofendida em sua feminilidade, ainda assim continuava linda. Mesmo quando as lágrimas de indignação começaram a brotar de seus olhos, inundando-lhe o rosto perfeito e borrando-lhe a maquiagem, mesmo assim continuava linda. Dava a impressão de possuir uma beleza indestrutível, uma beleza que transpareceria ainda que estivesse coberta pela lepra ou até mesmo apodrecendo debaixo da terra. Quando olhava para ela pensava na maneira como Jean Cocteau certa vez, descreveu Ava Gardner: o mais belo animal do mundo.
Mas o que fazia da moura um fenômeno da natureza não era apenas sua bunda farta e bem desenhada, ou a perfeita simetria de seus seios redondos e volumosos, ou suas pernas lisas e bem torneadas, ou seu rosto misterioso e provocante, ou sequer seus olhos negros, mas todo esse aparato em movimento. A harmonia cinemática com que se articulavam todos esses elementos era o que seduzia, talvez muito mais do que as qualidades isoladas de cada um deles. Ouso dizer que, com uma movimentação daquelas, até mesmo um pé de alface ficaria sensual.
Por isso, acho muito improvável que algum homem pudesse resistir a ela. Quando Augusto tratou-a daquela forma, no inferninho, não estava sendo nem de longe sincero. Tudo não passava de um plano. Ele sabia que uma mulher como aquela, em estado de autoconfiança plena, não seria menos que incontrolável. E ele não queria apenas comê-la. Queria dominá-la e exibi-la. Se tivesse uma lareira, pensava, colocaria a cabeça dela pendurada bem em cima, como um troféu de caça.
Mas isso seria só depois, porque, naquele momento, ele estava brincando de ignorar a gostosa. Tarefa difícil, já que a gostosa era realmente gostosa, o que o obrigou a se distrair com outras gostosas, que eram muitas e ainda estavam convenientemente bêbadas. Não que ele precisasse de álcool para amaciá-las. Na verdade, poderia comer qualquer uma delas sem muito esforço, mas decidiu de repente que não experimentaria nenhuma das franguinhas, aquele perdulário.
Já tinha outro alvo na alça de mira: a nova garota do caixa. 
Ela não estava dando mole nem nada, mas era uma loirinha interessantíssima, a pele muito branca e coberta de sardas, combinação particularmente agradável ao gosto de nosso canalha. Um detalhe interessante é que ela se destacava por não combinar nem um pouco com o ambiente. Parecia-se pouco com as garotas dali, provavelmente só trabalhava durante a noite por necessidade, talvez para pagar a faculdade, ou o tratamento de câncer da mãe, ou a creche do filho, sei lá. O que quero dizer é que ela afetava ares de mulher séria, do tipo que tem como pressuposto de dignidade jamais dar no primeiro encontro. Um tabu, sem dúvida. E Augusto era muito bom em quebrar tabus. Estima-se que, entre 2003 e 2004, tenha quebrado uns oitenta tabus aproximadamente. Ria de mulheres com disciplinas morais auto-impostas, pois, assim como o mercenário de guerra que pendura os dedos de suas vítimas em um colar como souvenir, ele colecionava as dignidades de várias princesinhas famosas pela firmeza de caráter.
Para ele, uma empreitada daquela era diversão garantida. Nesse caso específico, mais ainda: se o plano inicial era apenas distrair-se da moura, sentiu que a loirinha do caixa lhe proporcionaria muito mais que isso. Apesar da armadura, Augusto notou que ela tinha uma inquietação meio lânguida e um trejeito quase imperceptível, uma forma de passar discretamente a língua sobre o lábio superior, umedecendo-o. Um detalhe sutil, mas que, para Augusto, trazia uma mensagem explícita: ela estava no cio. Às vezes fico em dúvida se ele era mesmo capaz de ler aqueles signos ou se acreditava naquilo somente para se sentir mais seguro. O certo é que enxergava feito um gavião. Para se ter uma idéia, estava a uns dez metros de distância e dela não via mais que a parte superior do tronco através de um vidro, mas, com seu olhar de tomografia computadorizada, já havia escaneado todo o corpo da menina. De onde estava, era capaz de afirmar com segurança que tinha pernas firmes, não muito grossas e que sua bunda era bem proporcionada, provavelmente com algumas celulites – parecia estar uns três ou quatro quilos acima do peso, mas nada que quebrasse seu encanto de camponesinha alemã. Media no máximo um metro e sessenta e cinco, mas sua coluna perfeitamente ereta e sua fisionomia de seriedade faziam-na parecer mais alta. Pela maneira como passava os cartões de crédito pelo leitor, Augusto percebeu que sua mão tinha movimentos suaves e a imaginou batendo-lhe uma boa punheta.
Decidiu interromper essa linha de raciocínio. Sua experiência o havia ensinado que, se um homem deseja sexo de uma mulher, a última coisa sobre a qual se deve pensar ao abordá-la é justamente sexo. Era, antes de tudo, um pragmático. Só mergulhava na alma de uma mulher o suficiente para saber como enganá-la - a maioria dos homens, aliás, considera louvável esta atitude, mas poucos são capazes de colocá-la em prática sem remorso. Porque, no fundo, o grande problema é que amamos as mulheres profundamente com a alma, quando na verdade deveríamos ter por elas não mais que uma afeição de animal doméstico. Nós, homens comuns, pensamos demais. Augusto nunca meditava a respeito de sua própria condição. Um homem que medita sobre sua própria condição jamais alcançaria os resultados que ele alcançava.
Assim, dispersou aqueles pensamentos e tratou de fazer logo o que devia ser feito. Abandonou sua cerveja sobre a mesa mais próxima e foi saindo do círculo de gostosinhas que o rodeavam como galinhas poedeiras. Uma delas, uma magrelinha brejeira, deliciosa e atirada, ainda lhe falava alguma coisa, forçando a barra para esticar aquela velha conversa fiada em que todas as mulheres tentam envolver um cara na esperança de ouvir uma cantada. Para Augusto, no entanto, ela e as outras não mais existiam. Saiu sem rapapés e acabou obrigando a magrelinha a concluir para um espaço vazio a frase que já havia iniciado. Vindo de qualquer outro pareceria grosseria, mas Augusto fazia esse tipo de coisa o tempo todo e com tanta naturalidade que nenhuma delas se ofendia. Ao contrário, ficavam ainda mais encantadas - ele as havia adestrado brilhantemente, essa é a verdade.
Aproximou-se do caixa.
Já era final de noite e havia uma fila quilométrica de bêbados pagando suas contas. Mesmo sendo freqüentador assíduo do inferninho, ele sempre se divertia com o fato de os artistas malditos da Vila Madalena pagarem suas contas com cartões de crédito reluzentes e se mandarem para casa em seus carros importados. Para ele, eram todos amadores. Ele conseguia mais e melhores mulheres sem cartão, sem carro e sem decorar as resenhas da Folha Ilustrada.  
- Com licença, preciso de uma informação.
- Pois não, respondeu-lhe secamente a loirinha do caixa, sem ao menos desviar os olhos do leitor de cartões de crédito.
- Eu quero o número do seu telefone. 
Foi só o que ele disse. Com essas duas frases ridículas, ele comeu a loirinha, veja só. Eu sei, eu também não acreditaria se me contassem, mas analisando com um pouco de generosidade a coisa faz até um certo sentido. Primeiro, ele vai ao caixa abordá-la, fingindo desinteresse, com cara de quem pergunta a localização do banheiro. A loirinha, distraída em seu trabalho, responde “pois não”, dando ao filho-da-puta o gancho perfeito para sua investida, que, obviamente, a pega de surpresa. Note-se que ele diz a segunda frase “eu quero o número do seu telefone” já em tom de exigência, o que demonstra muita astúcia. Pessoas distraídas tendem a acatar ordens de maneira inconsciente. Além disso, ele foi direto e sincero e nenhuma mulher espera uma cantada direta e sincera, sobretudo em um inferninho da Vila Madalena.
Bom, e havia os olhos. Os malditos olhos. Quando recebeu a cantada, a primeira coisa que a loirinha reparou, acredite, foi aquele olhar parado e aquela fisionomia inexpressiva que tanto poderia significar um desejo calmo e firme, como insanidade mental instalada. Ou as duas coisas. Ela estava fora do eixo. Sentiu dúvida e depois medo. Ficou excitada. Quis rir. Tudo isso já na primeira fração de segundo depois de tê-lo visto pela primeira vez. Quando deu por si, já tinha um sorriso meio idiota estampado no rosto. Mas a ficha ainda não tinha caído totalmente.
- Meu telefone?
- Sim, seu telefone.
- Mas...
- Vou gravar no celular, só um momento.
- Como assim? Não estou entendendo...
- Droga, descarregou. Isso sempre acontece.
- Eu nem te conheço e além do mais...
- Posso anotar nesse guardanapo aqui?
- Ahn, claro... Quer dizer, não! Espera aí...
- Vou usar sua caneta, ok?
- Moço, vamos com calma... afinal, esse...
- Acho que está falhando.
- ...esse não é o melhor lugar e...
- Tem razão.
- Ahn?
- Você tem razão.
- Tenho?
- Tem. Esse não é o melhor lugar. Acho melhor a gente sair fora.
- Sair fora?
- Sim.
- Você quer dizer... sair daqui... tipo... agora?
- Isso mesmo.
- Olha, não leva a mal, moço, mas tem essa fila enorme aqui e...
- Tudo bem. Faço questão de ser o último.     
Admito que essa última frase foi muito boa. Um fecho de ouro para uma abordagem perfeita. Sinceramente, não saberia dizer se foi tudo planejado ou se ele improvisou, mas posso garantir que funcionou muito bem. Saíram juntos do inferninho assim que Augusto pagou sua conta.
Quanto à moura, já havia sido tragada pela espiral de destruição. Augusto a tinha visto pela última vez pouco antes de ir até o caixa, quando ainda estava cercado pelas gostosinhas oferecidas. Ela estava num estado lastimável, um verdadeiro farrapo humano. Ao que parece, não havia mesmo assimilado o golpe da rejeição. Jogada em um canto, fumou um baseado que lhe deram e virou algumas doses de uísque, coisa que raramente fazia. Começou a falar alto e a gesticular com os braços abertos, dando escândalo. Suas amigas desapareceram todas. Apenas uma pessoa ficou ao seu lado, um ex-namorado de adolescência que nunca deixou de amá-la e, disfarçado de amigo, vivia ao seu redor recolhendo migalhas de afeto. Era perfeito para ela. Tinha pedigree, era rico, bonito e devotado, mas ela o desprezava. Bêbada, dizia-lhe as maiores barbaridades. Dava-lhe socos no peito e até tapas no rosto e, mesmo quando encharcou-lhe o peito com uma golfada de vômito, ele permaneceu firme, amparando-a com carinho e evitando a aproximação dos aproveitadores – sem saber que o maior deles já havia maculado a integridade da moura muito antes, sem ao menos tocá-la.
Enquanto isso, a loirinha do caixa, que já havia sido enredada na fala viscosa de Augusto, levou-o para o seu apartamento em Pinheiros, onde transaram furiosamente. Creio que seja, inclusive, desnecessário descrever a cena. Mas vou descrever assim mesmo. Primeiro, porque durante o ato aconteceu uma coisa que talvez seja decisiva para futuro do nosso personagem – e digo talvez porque ainda não sei bem qual será o seu destino. Em segundo lugar, porque odeio elipses narrativas, esses truques sujos para encobrir o ato sexual, como nas cernas em que mal começa um simples beijo e já cortam para uma cena em que o casal está fumando um cigarro. Eu não gosto dessas coisas. Por isso, faço questão de explicar claramente como, ao entrar no carro da loirinha, Augusto enfiou a mão por baixo de sua saia e começou a massagear-lhe a xoxota enquanto metia a língua em sua boca pequena. Também não omitirei o fato de que começaram a trepar ali mesmo, no estacionamento do inferninho, quando, depois de um boquete meio desajeitado, ela recostou o banco de Augusto e, cavalgando sobre ele, quase o sufocou com seus peitinhos duros enquanto socava a cabeça no teto do carro. Não hesitarei sequer em descrever a maneira suja com que Augusto, sem a menor delicadeza, colocou-a de quatro sobre a cama, já no apartamento de Pinheiros, e cuspiu-lhe bem dentro do cu, para, em seguida, deflorá-lo violentamente. Não cessarei nem quando chegar à parte em que gozaram juntos depois que Augusto agarrou-a pelo pescoço e começou a esganá-la. Talvez pense em parar quando chegar à parte em que ela, a princípio excitada com a idéia do estrangulamento, começou a se debater desesperada, com os olhos esbugalhados e as veias da testa saltando. Por fim, terei cumprido minha missão quando descrever o rosto assustado e cheio de hematomas dela, que, depois de inconsciente por algum tempo, ainda conseguiu ver Augusto recolhendo suas roupas e saindo apressadamente em meio a estranhos pedidos de desculpa.
Alguma coisa não havia saído conforme o planejado.
Foi pra casa meio fora de si. Exausto, jogou-se no sofá sem tirar a roupa e adormeceu profundamente. Quando acordou, ainda cansado, lembrava-se do que tinha feito na madrugada, mas de uma maneira diferente, tudo envolto em uma névoa, como num sonho. Vinham-lhe à mente fragmentos de memória esparsos e entrecortados, sensações embaralhadas, idéias meio desconexas. Os fatos estavam todos lá, mas não formavam uma totalidade coerente. Sentia-se confuso. Não se lembrava de ter bebido muito e aquelas distorções e lapsos de memória deixaram-no perturbado. O celular tocou várias vezes durante o dia, mas ele não atendeu, protelando ao máximo o momento de sair da cama. Estava de mau humor e assim ficou até a noite, quando resolveu não pensar mais no assunto. Tomou uma chuveirada e saiu novamente atrás de sexo. 
Aqui, há um ponto que acho importante esclarecer: esses fatos remontam à época em que Augusto já andava com a cabeça meio torta. Ao que parece, depois de anos realizando cada uma de suas taras, elas simplesmente começaram a se esgotar. Loiras, negras, ruivas, morenas, orientais, dançarinas de boate, colegiais, cinqüentonas, enfermeiras, putas, crentes, secretárias, vagabundinhas de beira de estrada, vendedoras de shopping center, gêmeas suecas, tudo isso já havia experimentado e nada disso mais lhe satisfazia. Precisava ir além. Há meses sentia impulsos mórbidos de violência e escatologia e já não resistia à tentação de colocar prática a sujeira que orbitava sua mente - nada, aliás, que já não tenha sido experimentado pela maioria dos nossos cidadãos de bem. Em Augusto, porém, tudo o que se referia ao sexo explodia com uma força devastadora e não demorou muito para tudo estar totalmente fora de controle. Muitas vezes, como na noite com a loirinha do caixa, entrava em uma espécie de transe, sua visão ficava turva e ele perdia o domínio sobre si mesmo. Não que ficasse inconsciente, apenas não conseguia se controlar e aquilo começava a deixá-lo sinceramente preocupado. O ato sexual, até então refúgio, transformava-se agora em território hostil.
Curiosamente, já havia sido alertado sobre os perigos da promiscuidade exacerbada, justamente por uma de suas amantes, uma balzaquiana esotérica meio amalucada que conhecera em um desses ateliês holísticos freqüentados por dondocas desocupadas – onde, aliás, só se matriculou para satisfazer seu fetiche por instrutoras de ioga. “O ato sexual”, dizia ela, “envolve uma intensa troca de energia. Você pode estar pondo em movimento forças que estão além de seu controle.” Na época, ele não deu muita importância, não tinha muita consideração pela coroa doidona e achava que sua conversa cheirava a retórica de cartomante. Só depois do episódio na casa da loirinha foi pensar que talvez aquele aviso contivesse sentidos mais profundos.
Mas, àquela altura, esta era apenas uma percepção vaga, não havia se delineado em cores vivas para Augusto, que continuava escondendo-se atrás de suas ereções: é dessa época, aliás, uma de suas aventuras mais lendárias, aquela que o convenceu de que ainda estava no controle, aquela que o fez acreditar que tudo ainda era uma grande diversão, como nos velhos tempos.
Naquela noite, enquanto bebia com algumas mulheres numa mesa do inferninho, um cara resolveu se intrometer na conversa. Era um desses canastrões iniciantes, um universitariozinho arrogante, metido a escritor maldito, mas sem muito lastro intelectual. Já estava meio bêbado e falava alto, tentando obviamente causar impressão. Seu discurso variava entre considerações cheias de falsa indignação sobre a frivolidade do ambiente e a pura jactância sexual. Como era bonito, as três garotas divertiam-se com suas frases de efeito e ele logo se tornou o centro das atenções na mesa. Augusto detestou-o imediatamente. Constatou que não passava de um Bukowski mal-acabado e que a indignação de um playboyzinho de classe média como aquele era tão ameaçadora quanto um exército de guerrilheiros com pistolinhas d’água. Se lhe dissesse isso na cara, o frangote talvez tivesse partido, humilhado. Mas Augusto, como sabemos, não se metia em discussões de bar – ou em discussões de qualquer outra natureza. Prezava, antes de tudo, a discrição. Ficou na dele. No entanto, um sorriso quase imperceptível se desenhou em seu rosto quando as garotas insinuaram a possibilidade de uma pequena suruba, envolvendo os participantes da mesa, num apartamento próximo, na Aspicuelta. Normalmente, não se interessava por orgias, sobretudo aquelas que envolvessem outros homens, mas, naquela noite, excepcionalmente, Augusto resolveu ir contra os princípios. Saíram.
No caixa, ainda viu a loirinha, cheia de manchas roxas no rosto e no pescoço. Ficaram cara a cara e ele pôde notar que ela tinha os olhos fundos, uma expressão meio abobada, uma estranha euforia que parecia tentar reprimir, como se tivesse acabado de fazer um salto de bungee jump e procurasse se recompor a muito custo. Ele chegou a cogitar a possibilidade de lhe perguntar sobre os fatos da última noite, mas, vendo-a naquele estado, preferiu jogar a sujeira para baixo do tapete. Acabou indo embora sem lhe dirigir a palavra. Ela, no entanto, não conseguiria agir com o mesmo cinismo. Respondeu com altivez à indiferença de Augusto, mas ficou machucada por dentro. Tinha sentimentos ambíguos quanto ao que havia acontecido na noite anterior e ainda passaria um bom tempo pensando nele, apesar de ignorada - ou talvez justamente por isso. Seu mundo viraria de ponta cabeça. Era a inconfundível vocação de Augusto para arrastar tudo à sua volta para a lama, uma espécie de Midas às avessas, cujo toque transformava tudo à sua volta em excremento. Nos cinco anos seguintes, a garota engordaria, largaria o emprego no inferninho, se mudaria de São Paulo e passaria um bom tempo antes de deixar algum homem tocá-la novamente. Só teria uma vida normal de novo quase três anos depois, quando conheceu um cara rico e esqueceu Augusto para sempre. Ou quase.

Augusto, por sua vez, já havia enterrado o assunto assim que saiu com as garotas e o frangote, rumo ao apartamento da Aspicuelta, onde os aguardava uma boa farra. Estava muito bem disposto, mas, ao entrar no apartamento de Vanda – a anfitriã - quase desistiu da idéia. Já havia dormido em mocós de pelo menos duas dúzias de hippies gostosinhas na cidade, mas aquele era definitivamente o lugar cujo cheiro de incenso era o mais desagradável que já sentira em toda a sua vida. Ainda que o sexo fosse sua prioridade 1 naquele momento, não pôde ignorar o desconforto que lhe causavam as ferpas do sofá de palha espetando-lhe a bunda e o cinzeiro rústico que exalava cheiro de madeira queimada e quase pegava fogo quando nele se apagava algum cigarro – certamente obra de algum artesão inepto de São Tomé das Letras. Sentiu-se particularmente constrangido com os gnomos de durepox, que dividiam lugar com cristais e pirâmides, sobre uma cômoda modular de papel reciclável. Já começava a se compadecer da cortina estampada com motivos astecas quando suas considerações estéticas foram brutalmente interrompidas pela voluntariosa Vanda que, sem rodeios, começou a chupar-lhe o pau ali mesmo, no meio da sala, sobre o sofá de palha que espetava a bunda.
Enquanto isso, as duas amigas maluquinhas de Vanda, deitadas sobre almofadas estampadas com a figura de Shiva, tentavam despir o frangote embriagado. Ainda meio atordoado pela velocidade com que as coisas iam se precipitando, parecia pouco à vontade e a pose de devasso profissional alardeada na mesa do bar meia hora antes começava a ruir, dando lugar a um olhar de lebre encurralada. As duas taradinhas já lhe haviam tirado a camisa, o sapato e as meias, mas ele lutava bravamente para que suas calças não tivessem o mesmo destino. Estava totalmente acuado e só teve um segundo de trégua quando as duas ficaram momentaneamente hipnotizadas pela visão do pênis enorme e ereto de Augusto, entrando e saindo vigorosamente da boca molhada de Vanda.
Estranhamente, o componente voyeurístico da cena, que incendiou as duas ainda mais, causou no molecote um efeito contrário. Intimidado, se encolheu no meio das almofadas de Shiva, resistindo às investidas cada vez mais violentas das garotas, já seminuas, com seus belos traseiros tatuados. Elas riam, excitadíssimas, enquanto Augusto jogava Vanda com as pernas abertas sobre o sofá de palha para chupar-lhe a buceta. Do canto da nádega esquerda de Augusto descia um filete de sangue proveniente de um corte causado pela ferpa do sofá de palha e com isso somou-se à cena um componente sadomasoquista. Isso foi o suficiente para que as amigas de Vanda, lindas, deliciosas e absolutamente ensandecidas, subtraíssem, de uma só vez, a calça e as cuecas do frangote amedrontado, revelando o pênis flácido encolhido entre as pernas brancas. Mas nem isso diminuiu-lhes o ímpeto e elas começaram a lambê-lo e masturbá-lo. Em meio aos gemidos histéricos de Vanda, permaneciam firmes em sua tarefa, concentradas e incansáveis, ainda que sem resultado.
O frangote estava pálido, imóvel, com os olhos esbugalhados sobre Vanda, que rebolava voluptuosamente sobre o pau de Augusto, depois da melhor chupada que já recebera em sua vida. Por fim, as duas vampiras desistiram da tarefa inglória de trabalhar na ressurreição dos mortos e juntaram-se a Vanda. Augusto deu conta das outras duas magistralmente, aumentando ainda mais a humilhação do pequeno farsante. Transaram fartamente os quatro, Augusto e as três, enquanto o frangote, nu, com seu pau mole, observava a cena, quase em prantos, jogado sobre as almofadas de Shiva e sob o olhar de reprovação de Jimi Hendrix no pôster da parede oposta. Depois disso, tornou-se uma espécie de seguidor de Augusto, que o desprezava solenemente. Em primeiro lugar, porque não dava importância a nada que não lhe proporcionasse mais mulheres do que ele mesmo pudesse conseguir. Em segundo lugar, porque considerava o frangote deprimente e sentia uma vontade irresistível de cuspir-lhe na cara. Quanto à Vanda e suas amigas, ainda o importunariam em busca de sexo por um bom tempo e ele as rejeitaria sempre, noite após noite, só pelo simples prazer de pisar na cabeça de alguém. Considerava aquilo quase tão bom quanto um boquete. Estava no auge, sentia-se superior ao resto do mundo, imerso, mais do que nunca, na liberdade que representava não se importar com ninguém além de si mesmo. Aparentemente, havia conseguido trancar os demônios no porão. Mal sabia que aquela havia sido a última grande aventura da sua fase de ouro.